Com emergência da fome, sociedade se mobiliza para atender vulneráveis
No final do mês de fevereiro, os irmãos gêmeos Wesllysson e Weslley, 21 anos, deixaram Itapeva, cidade que fica quase na divisa entre os estados de São Paulo e do Paraná, em busca de uma vida melhor na cidade grande. Ao chegarem na capital paulista, sem dinheiro algum, voltaram a se encontrar com uma velha conhecida da infância: a fome. “Já ficamos quatro dias sem comer nada. Quando a gente estava lá em Itapeva e decidimos sair do mato e ir para a cidade, procurar alguma coisa para conseguir chegar em São Paulo, ficamos três dias sem comer, só bebendo água. Passar fome é horrível. É uma sensação horrível. É um jeito muito ruim na barriga. Ficamos meio tontos, dá preguiça, dá moleza no corpo. Você não consegue pensar direito. É ruim”, contou Weslley Santos Silva. Mesmo destino encontrou Yara Angel Andrade Lucas, 20 anos, quando deixou a cidade mineira de Poços de Caldas e chegou à capital paulista. Até então, ela desconhecia a fome. “Depois que vim para cá é que conheci essa situação de rua”, contou à reportagem da Agência Brasil. “Era difícil porque não conhecia esse fato de pedir as coisas. Não era um hábito meu. E começando a viver na rua, a gente aprende. Quando eu cheguei em São Paulo, eu passei fome, mas depois disso, não mais. É uma sensação horrível [sentir fome]. Você estar com fome e não conseguir pedir ou ter vergonha pelo fato de estar naquela situação, isso mexe com nosso sentimento”, explicou. “Depois, quando a gente recebe um alimento, é um alívio total porque a barriga doía, sentia dor de cabeça. Fora psicologicamente também porque passei por uma situação que não passava antes, de passar fome, que não passa pela cabeça de ninguém”, afirmou. A cabeleireira Thais Oliveira Cavalcante, 31 anos, moradora da zona leste paulistana, se esforça para que seus quatro filhos nunca sintam a fome que ela vivenciou na infância. “Como eu já passei por isso, tentei ao máximo evitar que eles passassem também”, destacou. Ela afirma que a vida ficou mais difícil e o dinheiro mais escasso durante a pandemia de covid-19, quando as pessoas deixaram de procurar o serviço de cabeleireira. O salário do marido era suficiente apenas para pagar o aluguel e despesas da casa que, inclusive, chegaram a ficar atrasadas. “Ele segurou o aluguel. Chegamos até a atrasar alguns [meses]”, contou. Mas os filhos [que tem entre 3 e 13 anos] não deixaram de comer nesse período. “Dificuldade extrema não [tivemos]. Mas às vezes não conseguia comprar tudo e precisava da ajuda de alguém. Chega a ser humilhante, na verdade. A gente sabe que a gente deveria contar com a ajuda do governo já que a gente paga pra isso também. Só que, infelizmente, nem sempre a gente é ajudado. Então, a sensação é bem ruim, é de humilhação mesmo, de impotência”, destacou. Wesllysson, Weslley, Yara e Thais tem uma história comum a muitos brasileiros: a experiência com a fome. Embora não estejam classificados no nível mais grave de insegurança alimentar, todos eles ainda enfrentam dificuldades e incertezas sobre o futuro. E esse universo é comum à maioria dos brasileiros. Apenas 44% da população brasileira se encontra atualmente em um nível de segurança alimentar, ou seja, com capacidade para se alimentar saudavelmente, podendo comprar os alimentos que quer e fazendo todas as refeições diárias – o que inclui ainda todos os membros de sua família. “Há três níveis de insegurança alimentar: a leve, a moderada e a grave. A leve é uma família que tem alimentos, mas ela não tem segurança de que vai ter o alimento na próxima semana, por exemplo. A insegurança alimentar moderada é quando não se tem o suficiente para alimentar todos os membros da família, já tem alguma restrição alimentar seja do tipo de alimento seja na quantidade de refeições. O terceiro nível é a insegurança alimentar grave que é o que chamamos de fome, que é a família que não tem alimentos e consegue fazer, no máximo, uma refeição por dia – quando consegue. São famílias que todo dia acordam com dúvida se vão conseguir comer naquele dia”, explicou Rodrigo “Kiko” Afonso, diretor executivo da Ação da Cidadania. É nesse terceiro nível de insegurança alimentar que se encontram 33 milhões de pessoas hoje no país. “Essa situação é muito grave: é o pior estado de fome da história do Brasil. E, de fato, é algo que precisa de muita força política, mas principalmente, de mobilização da sociedade para que isso seja revertido em curto prazo”, disse Afonso em entrevista à Agência Brasil. Sociedade mobilizada Foi por meio de doações e de trabalhos que são desenvolvidos pela sociedade civil que Wesllysson, Weslley, Yara e Thais conseguiram se alimentar no período de maior dificuldade. Os irmãos, por exemplo, ao chegarem em São Paulo famintos, se depararam com um caminhão que fazia uma distribuição de comida à noite para moradores que vivem sob os viadutos na cidade de São Paulo. “No primeiro dia em que chegamos aqui [em São Paulo], a gente nem sabia onde estava. Ficamos sem comer. Quando foi à noite, fomos para debaixo de um viaduto e tinha uma pessoa distribuindo comida de um caminhão. A gente estava desesperado de fome. Pegamos comida e comemos”, contou Weslley. Após se alimentarem, eles tiveram forças para caminhar até a Paróquia de São Miguel Arcanjo, na zona leste, onde puderam encontrar uma figura que já conheciam pela televisão: o padre Julio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo. Foi por meio do padre e do trabalho social que é desenvolvido na paróquia e em outros pontos da cidade que ambos conseguiram um trabalho como jardineiro e uma casa para morar. Enquanto não iniciam o novo trabalho, eles vão fazendo suas refeições gratuitamente por meio de uma ação que é oferecida pela igreja. “Já passamos bastante dificuldade. Até maus tratos, quando a gente era menor, a gente sofreu. Passar fome é não ter o que comer em casa, às vezes trabalhar só para comer. Mas aqui [na paróquia] é comida boa, de verdade. Dão café
Exposição no IMS de São Paulo mostra ditaduras chilena e brasileira
Em 1973, o fotojornalista Evandro Teixeira (1935) foi enviado pelo Jornal do Brasil (JB) para cobrir o golpe militar no Chile. Acompanhado do repórter Paulo César de Araújo, Teixeira embarcou para o Chile no dia 12 de setembro, um dia após o golpe que culminou com a morte do então presidente Salvador Allende. Com as fronteiras fechadas pela junta militar chilena, ele só conseguiu entrar em Santiago no dia 21 de setembro, quando foi permitido que a imprensa registrasse o acontecimento, mas sob forte vigilância militar. Com a máquina analógica guardada dentro da jaqueta e sempre preparada para o clique, Teixeira conseguiu se desvencilhar da censura chilena e fazer os mais importantes registros daquele período para a imprensa brasileira. E são essas fotos, produzidas em preto e branco para o JB, que estão em exposição a partir desta terça-feira (21) no Instituto Moreira Salles, em São Paulo. A mostra Evandro Teixeira, Chile, 1973 é gratuita e fica em cartaz até 30 de julho. A curadoria é de Sergio Burgi, coordenador de fotografia do IMS. “A exposição olha primordialmente para o material que o Evandro produziu em Santiago dias após o golpe militar de 1973. E essa apresentação é construída em diálogo com o que ele havia produzido antes no Brasil, também no período de ditadura militar – imagens icônicas como a da tomada do Forte de Copacabana no dia 1º de abril de 1964, no primeiro dia do golpe”, disse Burgi, em entrevista à Agência Brasil. Aliás, essa foto produzida por Teixeira sobre a tomada do Forte de Copacabana, em que os militares são apresentados sob forte sombra e chuva torrencial no Rio de Janeiro, apenas com uma luz brilhando ao fundo, é um de seus registros preferidos. Apó visitar a exposição em sua homenagem, em São Paulo, Teixeira contou como a imagem foi feita. “As 5h, o Leno [capitão Leno, que era seu vizinho no Rio de Janeiro] bateu na minha porta dizendo que o golpe militar estava acontecendo. ‘Você vem comigo ou não?’, ele falou. Naquele momento, coloquei a câmera dentro da jaqueta, enchi os bolsos de filmes e levei só uma lente de 35 milímetros. E parti para lá”, contou o fotojornalista. E foi assim que ele fez o primeiro flagrante do golpe de 1964. Ao todo, a exposição apresenta 160 fotografias, além de livros, vídeos, fac-símiles, crachás de imprensa e até a máquina que Teixeira precisou levar ao Chile para transmitir ao Brasil suas fotos analógicas. Das 160 fotos em exposição, 130 apresentam as imagens feitas por ele naquele país. As demais são fotos em que retrata a ditadura brasileira. Entre elas está uma das mais famosas do período em que registrou centenas de pessoas aglomeradas na Cinelândia, no centro do Rio, segurando uma faixa onde se lê: Abaixo a Ditadura, Povo no Poder, feita durante a Passeata dos 100 mil. A foto, que havia sido escolhida para estampar a capa do Jornal do Brasil, acabou sendo censurada pelos militares e não pôde entrar na primeira página do jornal. Mas se tornou uma das imagens mais conhecidas sobre a ditadura militar brasileira. “Ele fez uma série de imagens das manifestações de 1968, que começaram com o assassinato do estudante Edson Luis (Edson Luís de Lima Souto, morto por militares brasileiros], passou pela missa de sétimo dia reprimida na Candelária, que culminou depois na chamada ‘sexta-feira sangrenta’ [evento em que os militares reprimiram uma passeata de estudantes, provocando a morte de pelo menos 28 pessoas]. E, por fim, retratou também a Passeata dos 100 mil”, explicou Burgi. Salas expositivas A exposição apresenta três grandes conjuntos de imagens feitas por Teixeira nessa viagem ao Chile. No primeiro espaço são apresentadas fotos que ele fez da ditadura brasileira e também imagens em que retratou o que aconteceu no Estádio Nacional de Chile, “transformado em um campo de detenção, torturas e assassinatos”, segundo o curador. Nesta sessão da sala expositiva, o curador colocou de lado as imagens feitas no estádio e que foram encenadas pelos militares, mostrando poucos presos políticos nas arquibancadas e um coronel dando entrevista. Dizia que todos eles recebiam bom atendimento nas prisões. Do outro lado, foram colocadas as fotos que Evandro fez ao conseguir se desvencilhar dos militares e entrar no subsolo do estádio, mostrando os estudantes sendo presos. “A junta militar [chilena], ao liberar a imprensa internacional, tentou fazer a reconstrução de uma narrativa às avessas do que de fato estava acontecendo no Estádio Nacional. Ele [Teixeira] e dezenas de fotojornalistas foram levados ao estádio, que foi previamente preparado com apenas 10% dos presos escolhidos para ficarem ali nas arquibancadas. Enquanto o coronel dava entrevista dizendo que os presos tinham direito a banho de sol e atendimento médico, o Evandro, que já conhecia o local por ter coberto a Copa do Mundo, desceu ao subsolo e mostrou imagens de estudantes chegando, presos”, disse o curador. Evandro Teixeira se lembra bem desse momento. Ao visitar a exposição nessa segunda-feira (21), ele contou à Agência Brasil como foi vivenciar essa parte da história. “Foi um momento de tensão no Estádio Nacional, por exemplo. Como eu conhecia o estádio, por já ter estado na Copa do Mundo de 1962, eu sabia onde estava pesando. Sabia que lá tinha um porão. E aí quando eu estava acompanhando a visita [oficial] ao estádio, quando acabou [essa apresentação], dei uma fugida e fiz rapidamente meia dúzia de fotogramas de estudantes presos encostados no paredão. E todos eles morreram. Todos que estavam no fotograma morreram”, contou. O segundo espaço da sala expositiva apresenta fotos feitas por ele nas ruas de Santiago. É nesse espaço que se encontra também a máquina de telefoto, que funcionava como aparelho de fax e que utilizava para enviar fotos do Chile para o Jornal do Brasil. “Aqui há uma série de imagens do Palácio de La Moneda bombardeado, da cidade ocupada pelo Exército e do cemitério periférico com covas abertas”, descreveu o curador. Já o terceiro espaço apresenta as imagens que Teixeira fez sobre a morte e o enterro do poeta chileno Pablo Neruda. O fotógrafo havia conhecido Neruda e sua esposa Matilde ainda no Brasil, quando estiveram em Salvador para visitar o escritor