Diretora do Arquivo Nacional quer valorizar memória de periféricos


A historiadora e jornalista Ana Flávia Magalhães toma posse como nova diretora-geral do Arquivo Nacional, nesta sexta-feira (17), no Rio de Janeiro. Primeira mulher negra a ocupar o cargo, ela tem a responsabilidade de valorizar e promover a diversidade do acervo, além de tornar mais transparente o acesso à instituição, criada há 185 anos.

No atual governo, o Arquivo Nacional ganhou status de secretaria dentro do Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, que é comandado pela ministra Esther Dweck.

Com sede no Rio de Janeiro, a instituição reúne acervo de diferentes períodos da história brasileira. São milhões de documentos textuais, cerca de 1,91 milhão de fotografias e negativos, 44 mil mapas e plantas arquitetônicas, filmes, registros sonoros e mais 112 mil livros, sendo 8 mil raros. Além disso, possui importante série histórica de dados que auxiliam na formulação e no monitoramento de políticas públicas.

Ana Flávia é professora adjunta do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Ela tem licenciatura (Unip), mestrado (UnB) e doutorado em história (Unicamp), além de bacharelado em jornalismo (UniCeub).

A historiadora substituiu Ricardo Borda D’Água Braga. Nomeado na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, ele foi alvo de críticas de entidades civis por ser considerado sem qualificação para o cargo: era formado em direito, possuía empresa de consultoria e treinamento em segurança e participava de competições de tiro esportivo. Na época, servidores fizeram denúncias de censura e assédio. Eles alegavam receber ordens para não divulgar datas e documentos de determinados temas, como sobre a ditadura militar.

Rio de Janeiro (RJ), 16/03/2023 – A diretora-geral do Arquivo Nacional, Ana Flávia Magalhães Pinto concede entrevista à Agência Brasil. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Tomaz Silva/Agência Brasil

Em entrevista exclusiva à Agência Brasil, Ana Flávia prometeu que sua gestão vai aproximar o Arquivo Nacional da sociedade, com foco em projetos que resgatem a memória dos grupos historicamente oprimidos. Além disso, disse que temas tidos como sensíveis e controversos não vão ser evitados. Segundo ela, é preciso lidar com os traumas e não “esconder os nossos esqueletos no armário”.

Agência Brasil: Como foi construída a sua trajetória profissional e intelectual antes de chegar à direção do Arquivo Nacional? Por que optou pela carreira de historiadora e professora?

Ana Flávia Magalhães Pinto: A minha história começa a partir de uma graduação em jornalismo, em um período anterior às políticas de ações afirmativas, quando as universidades brasileiras ofereciam pouquíssimas vagas e o curso de comunicação era extremamente concorrido. Venho de escola pública e de uma região periférica do Distrito Federal, de uma cidade chamada Planaltina. Assim como várias outras pessoas negras daquele final da década de 90, eu ingressei no ensino superior em uma faculdade privada, a partir de uma decisão familiar de comprometer o orçamento geral para garantir esse sonho. E eu tenho experiências que me marcam bastante: a primeira é a de perceber que as expectativas de uma jovem negra de uma cidade satélite do Distrito Federal para o curso de jornalismo não eram tão compatíveis. Porque havia uma expectativa de que essa formação me tornasse uma excelente profissional para o mercado de trabalho, mas a imprensa corporativa queria profissionais enquadrados com aquilo que a gente chama de jogos de poder. Isso me deu uma certa sensação de desajuste.

Por essa razão, logo no início da graduação, eu começo a me dedicar à pesquisa e nessa experiência eu tomo conhecimento de um jornal chamado O mulato ou O Homem de cor. O meu contato com essa fonte me marcou bastante, porque ela colocava em xeque tudo aquilo que eu tinha aprendido sobre história do Brasil. Era um jornal editado em 1833, na cidade do Rio de Janeiro, que afirmava uma identidade racial e era escrito por pessoas negras não escravizadas que sabiam, não só ler, mas tinham acesso àquele ambiente da produção da comunicação nos modos do século 19. Pensei, isso não faz sentido nenhum porque o que eu sei sobre a história da população negra é que todas eram escravas e não sabiam ler. E a partir daquela fonte se abre um horizonte sem limites.

Cada vez menos parecia possível que eu aplicasse esses conhecimentos na comunicação. Mas ao mesmo tempo, eu via que ali tinha uma possibilidade de promover ações de reparação sobre como a comunicação era pensada no Brasil e como a própria história do Brasil estava sendo contada. Com isso, eu tenho uma experiência de contato não só com a pesquisa, mas com o ativismo. No final da década de 90, estamos vivendo no Brasil aquela efervescência em defesa das ações afirmativas. Nesse sentido, eu vou travar contato com uma experiência, um grupo de ativistas que estavam trabalhando na publicação de um jornal chamado Irohin, com o Edson Cardoso, que retoma o projeto no início dos anos 2000, e eu sou convidada a contribuir. Eu me formo em 2001 e entro no mestrado em história. Nesse momento, a comunicação não estava nem um pouco interessada em estudos sobre a imprensa negra. E concluo essa pesquisa sobre os estudos de imprensa negra para o século 19. Até então, se considerava que a imprensa negra era um fenômeno do pós-abolição, que as pessoas negras teriam construído esses veículos se inspirando na imprensa operária feita por imigrantes. Pessoas negras não eram vistas como agentes da imprensa operária e a gente vai desconstruir essa narrativa com fontes, com documentos que estão aqui no Arquivo Nacional e em outros acervos documentais. E a gente vai reencontrando esses documentos que não estavam perdidos, estavam até bem acessíveis, bem fáceis, mas as perguntas não estavam sendo feitas.

No doutorado, eu fiz uma pesquisa sobre trajetórias. Eu estava lidando com homens negros livres atuantes na imprensa e na política na segunda metade do século 19 em duas cidades: Rio de Janeiro e São Paulo. Qual a chance que eu tinha de não pensar logo de cara sobre a possibilidade de essas pessoas se conhecerem? Era praticamente impossível. Com o avanço na pesquisa documental, eu começo a perceber uma possibilidade de contar essa história de uma outra forma, de pensar em simultaneidade e conexões diretas e indiretas. E aí, então, eu concluo essa tese que vai acabar sendo premiada na Unicamp.

Eu não tinha dúvida de que eu era uma historiadora que contribuía ao longo desse tempo para ações do movimento negro. Nesse processo, eu acabo percebendo o diálogo entre ativismo e comunicação popular, uma história engajada, que hoje a gente chama de história pública. Eu percebia demandas populares a respeito do direito à memória. As pessoas queriam ter acesso a essas informações, queriam ter contato com os documentos. A gente fala sempre que o Brasil tem um problema com a sua memória, mas existe o desejo. E eu percebo uma série de iniciativas de formação de acervos particulares da preservação da memória do ativismo. E eu vejo também uma série de fragilidades da preservação desses acervos. Nesse contexto, enquanto eu tentava encontrar um caminho de estabilidade profissional, eu começo a mobilizar organizações, para que as pessoas olhassem para o que tinham nas casas, nas organizações com respeito, cuidado e reconhecimento da sua legitimidade.

E a gente tem nos últimos anos uma sensibilidade para incorporação desses acervos naquilo que está abrigado em instituições públicas. Eu estou falando de uma demanda popular para o direito à memória. A gente vai ver o reconhecimento da presença negra, indígena, de mulheres, de populações subalternizadas, das chamadas populações periféricas. Esses documentos, essas pistas estão nos arquivos públicos. Não estão visíveis na intensidade que a gente gostaria, mas a gente está lidando com o fato de que pessoas negras, indígenas, mulheres e outros segmentos sempre existiram. É nesse sentido que eu chamo atenção para a própria ação do Arquivo Nacional, que ao longo da sua existência, por força da ação de pesquisadores e de servidores, têm empenhado esforços para tornar visível o potencial que essas instituições têm na promoção do direito à memória. E a gente tem muito interesse de que ele seja fortalecido, porque sabe que encontra bastante coisa aqui e pode encontrar ainda mais.

Agência Brasil: Como foi receber o convite para dirigir o Arquivo Nacional?

Ana Flávia Magalhães Pinto: Eu recebo o convite para o Arquivo Nacional no melhor momento da minha presença na Universidade de Brasília. Era um momento em que eu tinha inclusive assumido o compromisso de não sair de lá em hipótese alguma. Nem que fosse para composição do governo eleito em 2022, porque dificilmente pensava que pudesse ser convidada para dirigir o Arquivo Nacional, considerando a tradição, considerando as disputas e as prioridades. Eu cheguei a recusar um convite para estar em outro ministério, porque eu estava na universidade estabelecendo práticas de letramento histórico com os arquivos do Distrito Federal, com arquivos de outras instituições. E o convite vem no momento em que compartilhava essa certeza de que não sairia da sociedade civil.

Mas há o reconhecimento de que estar à frente de uma instituição como o Arquivo Nacional é estratégico para a promoção de uma série de ações de reparação histórica que são fundamentais. E é por essa razão, inclusive, que o convite chega.

Não é por uma simples alteração na fotografia: ‘Ah, precisamos ter um número, uma mulher negra, primeira vez como titular na direção do Arquivo Nacional’. Mais do que a minha presença como uma mulher negra historiadora, eu venho com uma perspectiva, com um compromisso de propor um reposicionamento da imagem do Arquivo Nacional naquilo que é mais caro: um instrumento de promoção da cidadania, via acesso à informação e pelo direito à memória. Isso impacta não só o diálogo com a sociedade geral, mas até mesmo a maneira como os órgãos da administração pública federal têm pensado o processamento de documentos. Aquilo que é prioritário, como esses parâmetros são estabelecidos, de modo que a gente pense não só nas necessidades imediatas da gestão dos órgãos, mas como a gente constrói uma memória que dê visibilidade aos sujeitos que são impactados pela ação dos órgãos.

A gente sabe da importância que o Arquivo tem para fornecer dados que fomentem não só a proposição de políticas públicas, mas o monitoramento com foco na promoção da cidadania. É importante que a gente lembre que o Arquivo Nacional ou qualquer outro arquivo público não têm clientes. Eles têm usuários. O público precisa ser entendido assim. E usuário de equipamento público é cidadão. Temos por óbvio o desejo de orientar a rota do Arquivo Nacional para que ele jamais se afaste desse objetivo de ser um instrumento de promoção de cidadania, de ser fundamentador de direitos humanos.

Agência Brasil: Na gestão passada, houve denúncias de censura dentro do Arquivo Nacional, de que era proibido divulgar datas e documentos sobre determinados temas, como a ditadura militar. A nomeação do diretor anterior, Ricardo Borda D’Água Braga, foi criticada por não ter experiência e formação profissional adequadas ao cargo. Havia ainda uma preocupação pelo fato de o Arquivo Nacional estar subordinado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Como você encontra o Arquivo Nacional depois desse período e como se posiciona sobre o tipo de gestão que se construiu no governo passado?

Ana Flávia Magalhães Pinto: Estar no Ministério da Justiça não é um problema. O Arquivo Nacional já esteve na Casa Civil, foi para o Ministério da Justiça e agora está no Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. Muitas vezes, os arquivos públicos estaduais estão vinculados à Secretaria de Cultura. Não existe um lugar óbvio, um lugar obrigatório para se vincular os arquivos. Ao contrário do que as pessoas pensam, os arquivos são espaços dinâmicos. Arquivo não é depósito. E, por isso, que cabe interface com a cultura, com o direito, com a ideia de gestão e inovação de serviços públicos.

A gente sobreviveu a um governo que não tinha um compromisso com uma ideia de cidadania ampliada e com isonomia. Não era esse o projeto. É preciso dizer que a isonomia entre cidadãos, inclusive, é um problema da história do Brasil. Ano que vem, a gente chega aos 200 anos da Constituição do Império. Se a gente observar a Constituição do Império, não tinha como projeto a igualdade entre os cidadãos. A gente tem lutado ao longo desses 200 anos. Memória é política, direito à memória é espaço de disputa política. Neste sentido, a memória está associada diretamente ao esquecimento e tem a ver com as prioridades estabelecidas por quem pode pautar, quem tem mais poder ao longo do tempo. Temos segmentos que merecem receber um tratamento de reparação pelas injustiças. Temos uma oportunidade para isso já em 2023.

Uma das coisas prioritárias dessa gestão é que não precisamos esconder os nossos esqueletos no armário. É preciso que a gente explicite quais são os nossos traumas. Porque sem um reencontro com a nossa história, não teremos chance de resolver os nossos desafios fundantes e estruturantes. É uma tarefa fácil? Não. É algo que implica dialogar com os próprios gestores dos diferentes órgãos sobre como se lê, como se dimensiona o potencial histórico dos documentos que têm sido produzidos hoje. É preciso lidar com a própria sociedade a respeito de quem são e quais são os documentos importantes, que são capazes de dar a medida da nossa experiência coletiva.

A gente percebe uma certa obsessão do anterior governo em silenciar as memórias sobre o período da ditadura, decorrente do golpe civil militar, mas é uma tradição. A gente tem desde 1824 uma tentativa de colocar para fora do primeiro plano da paisagem vários outros segmentos populacionais, sobretudo populações negras, indígenas e mulheres, sendo elas ou não das classes poderosas concentradoras de renda desse país. Então, é importante que a gente tenha uma postura um pouco mais propositiva. Não vamos mudar a nossa naturalização da violência de raça, gênero, de classe, de sexualidade, se nós não criarmos estratégias de reconhecimento da legitimidade desses sujeitos. E para isso essa gestão vai trabalhar arduamente. E não é porque ela é contra determinado grupo. É porque ela é a favor do direito de todo mundo.

Agência Brasil: Quais mudanças você pretende fazer no Arquivo Nacional?

Ana Flávia Magalhães Pinto: É preciso retomar e fazer uma análise do impacto que teve nesses anos de governo o projeto Memórias Reveladas. É preciso reestruturar esse projeto, reposicioná-lo. É também preciso arregimentar forças que estão dispostas a contribuir com o Arquivo Nacional. Vamos nos reunir com representantes dos segmentos que serão prioritários: pessoas negras, indígenas, da comunidade LGBTQIA+. E temos uma dimensão que é muito cara: a internacionalização. É preciso ampliar os territórios a partir da documentação do Arquivo Nacional. Nesse sentido, a gente tem sinalizado uma parceria com a Universidade de Pittsburgh, com a Universidade de Harvard e outras. Essas universidades estão com projetos de história da Amazônia, que permitem a gente não só perceber sujeitos negligenciados, mas territórios negligenciados, e um reposicionamento a partir do acervo do Arquivo Nacional.

Outra ação que a gente já movimentou foi a garantia da presença do Arquivo Nacional no Comitê Gestor do Cais do Valongo. O Arquivo Nacional não era um sujeito político protagonista dessa iniciativa, mesmo estando localizado nesse território que é chamado de Pequena África. Então, houve uma negociação via Ministério da Igualdade Racial, em diálogo com a ministra Anielle Franco, que estabeleceu uma interlocução com o círculo do Cais do Valongo. E a gente conseguiu uma cadeira com direito a voz e voto nos debates que vão acontecer para construção desse equipamento de letramento histórico e de reparação.

Agência Brasil: A senhora é a primeira mulher negra a ocupar o cargo mais alto do Arquivo Nacional. Temos visto outras mulheres negras assumindo postos de poder no governo federal. Qual a importância simbólica disso e de que maneira essas presenças impactam o funcionamento das instituições e como elas atuam no provimento de serviços públicos?

Ana Flávia Magalhães Pinto: Representa um esforço de rompimento com a naturalização da exclusão. A nossa presença em si não significa a superação dos problemas que temos enfrentado historicamente. Muito pelo contrário. Ainda temos uma presença reduzida se considerarmos a nossa participação na totalidade da população brasileira. Se fizer um recorte de raça e gênero, percebe-se que mulheres negras formam o maior segmento da nossa população. Existe um descompasso e as pessoas não estão acostumadas a encontrar mulheres negras nesses lugares. Portanto, há uma certa bravura em topar encarar esse desafio, mas é importante que se diga que não se pode impor às mulheres negras que resolvam sozinhas os problemas historicamente construídos nessa sociedade.

Há um esforço e um entendimento da necessidade da mudança, mas também do quão vulnerável somos se a nossa presença lida com pensamentos como: ‘agora mostre o seu talento’. Bom, a gente tem feito isso, nós sobrevivemos a um país estruturado em termos de raça e gênero. Se temos hoje mulheres negras com currículos para serem acionadas a compor essas pastas que estamos, significa que já temos demonstrado talentos e virtudes.

É por isso que há uma discussão para que a gente não fique confortável só com esses lugares. Porque há uma cultura da nossa exclusão. As pessoas que estão sendo chamadas a compor a nova direção do Arquivo Nacional, as que não são da casa, estão sendo convocadas considerando o perfil técnico, mas também a necessidade de se promover uma diversidade de gênero e de região. Porque não dá para gente seguir priorizando só profissionais do eixo Rio-São Paulo, tem gente boa no Brasil espalhada por todos os cantos.

Estamos lidando com uma série de fragilidades, então é preciso ter criatividade para que se proponha soluções para os nossos problemas e não fique paralisada neles. Afinal de contas, só estamos aqui porque não estivermos inertes perante os desafios, perante as barreiras.



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