A ministra da Saúde, Nísia Trindade, disse hoje (26) que, antes mesmo de assumir seus cargos, alguns membros da equipe do atual governo federal já sabiam da “trágica” situação que os yanomami enfrentam. Segundo a ministra, diferentes setores do atual governo – que tem na equipe uma liderança histórica do movimento indígena, Sônia Guajajara – vêm tratando da questão desde o início do processo de transição, no começo de novembro de 2022. No entanto, já apareciam, anteriormente, “vários indícios da gravidade da situação”, conforme atestam documentos do governo Jair Bolsonaro.
“Mergulhamos nesta questão durante o processo de transição, mas já tínhamos vários indícios da gravidade da situação”, declarou a ministra, ao participar da primeira reunião ordinária anual da Comissão Intergestores Tripartite. “É uma situação de abandono inadmissível. E eu diria que o abandono era como uma política – política que temos que superar com [ações de] cuidado e atenção integral à população indígena.”
As declarações da ministra reforçam a tese de que, até o fim do ano passado, o governo brasileiro vinha negando “a gravidade dos fatos, fechando os olhos para a tragédia que já se anunciava e que agora causa tamanha consternação”, conforme sustenta o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Entidades indígenas também têm destacado que as denúncias relativas à falta de assistência aos yanomami vêm de longa data. “[Esta] Não é uma situação revelada agora. Foi denunciada inúmeras vezes por organizações indígenas e aliados. Entre novembro de 2018 e dezembro de 2022, houve seis decisões judiciais nas diversas instâncias do Poder Judiciário, condenando o Estado a tomar as medidas urgentes necessárias”, sustenta o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
O Ministério Público Federal (MPF) investiga a presença ilegal de garimpeiros na área da União que, desde 1992, é destinada ao usufruto exclusivo do povo yanomami. Nesta terça-feira (24), dois procuradores da República que atuam em Roraima, Alisson Marugal e Matheus de Andrade Bueno, criticaram a forma como as ações de fiscalização vinham sendo realizadas, com “resultados pontuais”, insuficientes para coibir a extração ilegal de madeira e minérios.
Os procuradores também lembraram que o MPF reuniu indícios de desvio de medicamentos essenciais ao atendimento indígena que motivaram a Polícia Federal (PF) a deflagrar, em 2022, a Operação Yoasi, para apurar a suspeita de que o direcionamento de licitações causou a falta de remédios simples, como os usados para combater verminoses. O MPF estima que cerca de 10 mil crianças deixaram de receber os remédios de que necessitavam, o que pode ter agravado o quadro de subnutrição e acelerado a tragédia yanomami.
Em nota divulgada ontem (25), o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania informou que, entre 2019 e dezembro de 2022, a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos recebeu diversas denúncias sobre violação de direitos dos povos indígenas. “Como estamos vendo […], as ações do [extinto] Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos nunca foram suficientes ou adequadas para o atendimento dos povos indígenas e comunidades tradicionais, especialmente em um contexto de pandemia.”
Em meio à repercussão das imagens de adultos e crianças indígenas subnutridos, com a barrigas inchada, a ex-ministra Damares Alves, saiu em defesa da gestão anterior. No Twitter, Damares classificou como “mentiras” as críticas feitas a ela e a outros ministros do governo Bolsonaro.
Segundo a ministra, no governo Bolsonaro, a política indigenista era executada em três ministérios: Educação, Saúde e Justiça. “Ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos cabia receber denúncias de violações de direitos dos indígenas e encaminhá-las às autoridades responsáveis”, disse Damares, lembrando que representantes da pasta estiveram na terra indígena e em Boa Vista “inúmeras vezes” e que a pasta enviou ofícios aos órgãos responsáveis solicitando providências.
“A desnutrição entre crianças indígenas é um dilema histórico e foi agravada pelo isolamento imposto pela pandemia”, Damares. A ex-ministra disse que sempre questionou a política do isolamento imposta a algumas comunidades. “Está na hora de uma discussão séria sobre isso. Em vez de perdermos tempo nessa guerra de narrativas e revanchismo, proponho um pacto por todas as crianças do Brasil, de todas as etnias”, finalizou.
Diagnóstico
No início da semana passada, o Ministério da Saúde enviou para Roraima equipes técnicas encarregadas de elaborar um diagnóstico sobre a situação de saúde dos cerca de 30,4 mil habitantes da Terra Indígena Yanomami. Na ocasião, a iniciativa foi anunciada como um primeiro passo do governo federal para traçar, em parceria com instituições da sociedade civil, uma “nova estratégia inédita do governo federal para restabelecer o acesso” dos yanomami à “saúde de qualidade”.
Ao visitar a Casa de Saúde Indígena de Boa Vista, em Roraima, para onde são levados os yanomami que precisam de atendimento hospitalar, e os polos-base de Surucucu e Xitei, no interior da reserva indígena, os técnicos encontraram crianças e idosos com desnutrição em estado grave, além de muitos casos de malária, infecção respiratória aguda e outros agravos.
Apenas cinco dias após as equipes começarem o trabalho in loco, o ministério declarou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional e criou o Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública, responsável pela coordenação das medidas a serem implementadas, incluindo a distribuição de recursos para o restabelecimento dos serviços e a articulação com os gestores estaduais e municipais do Sistema Único de Saúde (SUS).
No último dia 21, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e vários integrantes do governo federal, como as ministras Nísia Trindade e Sônia Guajajara, e dos Povos Indígenas, visitaram a unidade de saúde em Boa Vista. O presidente prometeu envolver vários ministérios para superar a grave crise sanitária. No mesmo dia, aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) transportaram cerca de 1,26 toneladas de alimentos para serem distribuídos às comunidades yanomami.
Na terça-feira (24), os profissionais da Força Nacional do SUS começaram a reforçar o atendimento na Casa de Apoio à Saúde Indígena de Boa Vista, e os relatos lembram cenas de horror.
“Vamos estruturar um plano com ações de curto, médio e longo prazo a partir do relatório [das equipes técnicas] que recebemos ontem”, informou hoje Nísia Trindade. “É um quadro muito grave, que que vai exigir uma ação interministerial. Como bem disse [o xamã e líder yanomami] Davi Kopenawa, a fome é a ponta de um iceberg, um terrível indicador, mas a causa [do problema] não é a fome, e sim o garimpo ilegal, que desestruturou as formas de vida, contaminando os rios e propiciando condições para o aumento dos casos de malária através de escavações onde a água se acumula.