Juiz defende ampliação de acesso à tomada de depoimentos especiais

Há quase 20 anos, o Brasil começava a adotar novas práticas para ouvir os depoimentos de crianças e adolescentes vítimas de violência. Inicialmente chamado de depoimento sem dano, o procedimento tentava não agravar o sofrimento emocional de meninos e meninas, acolhendo-os de forma mais humanizada. Então juiz da Vara de Infância e Juventude em Porto Alegre, José Antônio Daltoé foi o responsável pela introdução, no Rio Grande do Sul, das primeiras inovações que, em 2017, resultaram na aprovação da Lei 13.431.

O texto legal, proposto pela deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), estabelece que crianças e adolescentes recebam assistência jurídica qualificada e psicossocial especializada que os proteja da eventual violência institucional – ou seja, de qualquer ação que ameace ou ofenda a integridade delas e que seja praticada por ou com a anuência de representantes do Poder Público.

Hoje desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e presidente da Associação Brasileira dos Magistrados da Infância e da Juventude, Daltoé diz que o país avançou muito desde que ele, inconformado com a maneira como teve que ouvir uma menina de 7 anos, vítima de abuso sexual, decidiu usar câmeras de vigilância residenciais para tentar uma nova forma de colher depoimentos que, uma vez gravados por pessoas aptas a conduzir as entrevistas, reduzissem a necessidade das crianças e adolescentes terem que ser ouvidas mais de uma vez, reavivando a situação traumática. Isso permitia que o depoimento fosse posteriormente exibido aos juízes e às outras partes do processo, inclusive ao acusado, sem que a vítima precisasse ser colocada diante do agressor.

Daltoé
Daltoé

Desembargador José Antônio Daltoé, idealizador do depoimento especial – Juliano Verardi/Imprensa do Tribunal de Justiça/RS

Apesar disso, em entrevista à Agência Brasil na semana em que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 32 anos, Daltoé afirmou que, passadas duas décadas, nem todas as comarcas do país dispõem dos equipamentos ou do pessoal capacitado necessários à tomada dos depoimentos especiais. 

Agência Brasil – O que são a escuta especializada e o depoimento especial? Há diferenças entre os dois procedimentos legais?

José Antônio Daltoé – Há, sim. No Brasil, essas práticas começaram [a ser sistematizadas] em 2003. Até então, não havia nenhuma preocupação específica sobre a forma de receber e ouvir crianças e adolescentes vítimas de violência. Agia-se quase da mesma forma que com um adulto. No sistema de Justiça, por exemplo, elas se sentavam diante de um juiz, uma promotora e um advogado, em uma sala de audiência comum, e eram obrigadas a responder perguntas muitas vezes mal formuladas. Às vezes, diante do próprio acusado que, não raramente, era pessoa próxima a elas, conhecida, o que provocava constrangimentos e sofrimentos adicionais. Era uma violência institucional. Então, começamos a adotar novas formas de escutar crianças e adolescentes, garantindo que elas fossem protegidas, cuidadas.

Agência Brasil – Na prática, como se deu essa mudança?

Daltoé — Começamos a instalar salas diferenciadas, onde crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência podem ser entrevistadas por uma pessoa capacitada, tendo sua privacidade garantida. E também os equipamentos necessários para que juízes, promotores, o acusado e seus advogados possam acompanhar, de outro local, o depoimento da vítima. Isso para resguardar a criança ou adolescente de qualquer contato, mesmo que visual, com o acusado ou com qualquer pessoa que possa representar uma ameaça ou constrangimento. Fizemos convênios e estudamos as práticas de outros países. Em 2010, o Conselho Nacional de Justiça [CNJ] expediu a Recomendação 33, orientando os tribunais de Justiça de todo o país a criar serviços especializados para colher o depoimento especial. Em 2017, veio a Lei 13.431, que estabelece que a escuta especializada, realizada por qualquer órgão da rede de promoção e proteção, e o depoimento especial, ou seja, a audição perante autoridades policiais ou judiciárias, ocorram em locais apropriados, acolhedores, que assegurem a privacidade da criança ou do adolescente.

Agência Brasil – Por que é importante estabelecer diretrizes específicas para ouvir os relatos de crianças e adolescentes vítimas de violência?

Daltoé — Uma escuta inapropriada pode prejudicar todo o processo. Uma pergunta inadequada pode induzir uma criança ou um adolescente a responder de certa maneira. Além de criar mais constrangimentos para as vítimas ou testemunhas de violência, isso pode tirar toda a credibilidade do depoimento. E a palavra da vítima ou da testemunha é de suma importância, principalmente em casos de abuso sexual, nos quais, na maioria das vezes, não há outras testemunhas ou vestígios materiais. Então, seguindo protocolos, devemos possibilitar um relato aberto para que a criança e o adolescente possam falar de muitas coisas, incluindo coisas que não dizem respeito ao processo. O objetivo é deixá-las à vontade para, quando chegarem ao ponto que interessa, falarem com suas próprias palavras. Evidentemente, isso dá mais trabalho. Feito desta forma, um depoimento que duraria dez minutos pode levar uma hora ou mais. É preciso muito mais paciência, mais tranquilidade.

Agência Brasil — Então, além de evitar a revitimização, poupando as crianças e adolescentes de reviver a violência sofrida, a intenção é também garantir a credibilidade do depoimento?

Daltoé — Exatamente. Quando eu era juiz criminal, testemunhei perguntarem a uma menina de 12 anos, estuprada, se ela tinha gozado. Com a escuta e o depoimento especial, esse tipo de situação não ocorre; a vítima não ouve uma barbaridade dessas. A pergunta chega a ela de forma adequada. Além disso, a lei de 2017 abarca uma interdisciplinaridade, já que ninguém vai diretamente à Justiça ao sofrer uma violência. É na escola, no sistema de saúde, no conselho tutelar que a pessoa acaba por revelar ou dar indícios de que algo ocorreu. Por isso, a lei estabelece o fluxo correto para encaminhar a criança, ou adolescente, ao local adequado, onde possa ser ouvida da forma apropriada e, sempre que possível, uma única vez.

Agência Brasil – Temos evoluído o suficiente para prevenir e coibir a violência institucional contra esse público?

Daltoé — Muito. Ainda estamos descobrindo formas de melhorar o trabalho, mas eu diria que a legislação brasileira neste sentido é uma das melhores do mundo. Só precisamos continuar aperfeiçoando as práticas e renovando periodicamente nossos módulos de capacitação. Todos os magistrados, advogados, assistentes sociais, psicólogos, enfim, toda a rede de promoção e proteção tem que se adaptar e se capacitar permanentemente. Às vezes, achamos que estamos fazendo certo e, ao ouvir uma palestra, nos damos conta de que estamos fazendo algo de errado.

Agência Brasil – Quais os outros desafios para aperfeiçoar esse trabalho?

Daltoé – Consolidar essa mudança de cultura é trabalho para uma geração. Há problemas sérios, pois há um certo, digamos, preconceito entre alguns magistrados e técnicos que, mesmo tendo acesso aos protocolos e a salas de audiência apropriadas, continuam fazendo as coisas de forma inadequada. E há aqueles que não têm acesso aos equipamentos. Hoje, contamos com equipamentos em mais de 1,2 mil* comarcas do Brasil. Infelizmente, eles estão distribuídos de forma desigual. Há estados que dispõem do serviço em todas as suas comarcas e aqueles que não têm. Além disso, o ideal seria que todo o Poder Judiciário contasse com equipes técnicas próprias capacitadas, mas, até onde tenho conhecimento, apenas São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal dispõem de técnicos do quadro para atender a todos os juizados.

Agência Brasil – E os outros?

Daltoé – As outras unidades federativas não os têm em todas as comarcas e, portanto, podem contratar gente de fora. Nesses casos, assistentes sociais, psicólogos, pedagogos e profissionais de outras áreas de formação são capacitados e contratados para fazer esse serviço de acordo com a necessidade.

Agência Brasil – Mas, pela lei, todos os tribunais têm que oferecer locais apropriados e profissionais capacitados, mesmo que estes não sejam do quadro.

Daltoé – Exato.

Agência Brasil – E no caso das comarcas que não oferecem esse serviço?

Daltoé – Acredito que continuam tomando os depoimentos da forma tradicional, descumprindo a lei.

Agência Brasil – Independentemente de serem, ou não, servidores de carreira, que tipo de capacitação os técnicos recebem?

Daltoé – Qualquer que seja o caso, são pessoas aptas a facilitar a tomada de depoimentos de crianças e adolescentes. Não precisam, necessariamente, ser psicólogos ou assistentes sociais, mas sim estar capacitadas. A própria legislação brasileira já fixa as situações e os protocolos validados pela academia e recomendados pelo CNJ. É com base nestes protocolos que os técnicos/facilitadores estão sendo treinados.

*Consultado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) informou que não tem um levantamento sobre o número de salas destinadas à tomada de depoimentos especiais ativas no Brasil

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