Dar banho nas crianças. Trabalhar transportando pessoas. Pescar. Os moradores de flutuantes do Tarumã-Açu encontram no leito do afluente do Rio Negro um meio de subsistência, alinhando o cuidado com os recursos naturais com o da própria família. Existente há décadas, a comunidade abrange atualmente mais de 250 famílias distribuídas em residências nas proximidades da Marina do Davi.
Com a decisão de suspender a ordem de remoção e desmonte de flutuantes das bacias dos rios Negro e Tarumã-Açu, à pedido da Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM), a presidente da Associação de Moradores da Marina do Davi, Sara Guedes, afirmou que consegue ver “uma luz no fim do túnel”.
“Essa decisão de parar o processo e não tirar mais nenhum morador sem ter para onde levar foi fundamental para sabermos que ainda podemos acreditar na Justiça e que órgãos como a Defensoria nos observam com esse olhar humano, que é o que buscávamos. Ninguém é contra o ordenamento, que haja uma fiscalização e que cada flutuante seja adequado conforme as normas, mas queremos o nosso direito respaldado”, declarou.
Desde a década de 1990, a aposentada Celina Magalhães, de 74 anos, reside em um dos flutuantes do Tarumã-Açu, onde criou os filhos e netos entre os banzeiros do rio. Após os filhos crescerem, eles foram morar em residências nas proximidades da sua.
“Estou muito feliz com a decisão, não só eu, mas todos os moradores, sabendo que temos mais segurança. Agradeço muito a Deus e à Defensoria, que nos deram a força para estarmos ainda no nosso teto. Vivemos aqui há 26 anos, nunca saímos daqui e, quando recebemos a notícia que tínhamos que sair, foi uma tristeza pensar para onde a gente iria”, disse.
A moradora tem em frente à sua residência uma placa de sinalização de contagem emitida pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (antiga SDS, hoje Sema) e Capitania dos Portos, no outro lado da porta, está o cartaz em letras vermelhas com o aviso de notificação de retirada, que estava marcada para acontecer na semana passada.
De acordo com a presidente da associação, a placa de contagem foi afixada nas casas há mais de duas décadas, o que demonstra a presença dos flutuantes em um período anterior a pandemia de covid-19. Sara Guedes afirmou ainda que após esse período, houve o aumento de flutuantes comerciais, não necessariamente de residências, já que ocorre um ciclo natural onde os moradores criam os filhos, que ao crescer vão morar em outras residências flutuantes.
“Eu fiquei feliz com a suspensão [da ordem de retirada] porque aqui é a nossa casa, nosso trabalho, têm muitos que dependem daqui. A pausa que deram traz esperança porque estávamos aflitos. Foram momentos difíceis, não sabíamos para aonde ir. Tem gente que está aqui desde sempre, há trinta, quarenta anos”, ressaltou a moradora Natasha Froes, que reside no local há 10 anos, desde os 15.
Entre as pessoas que fundamentam o sustento no rio, está Marcos Gomes de Souza, 69, proprietário de uma oficina de barcos há 30 anos, que além do cuidado diário para a realocação necessária dos óleos utilizados nas manutenções, também contribui com a limpeza dos resíduos sólidos encontrados pelo rio.
“Muitas pessoas ganham a vida aqui e isso deve ser olhado com carinho e respeito. O Tarumã está realmente morrendo, mas o que acontece é que Manaus chegou aqui. As baixadas não possuem fossas biológicas, então jogam tudo no Igarapé do Gigante, que desagua no rio. Tudo isso precisa ser levado em consideração”, observou.
Atuação da Defensoria
Para acompanhar a situação dos flutuantes na Comissão de Conflitos Fundiários do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas (TJAM), a Defensoria criou um Grupo de Trabalho com a participação de sete defensores públicos das áreas de Interesses Coletivos (Dpeic), Núcleo de Defesa do Consumidor (Nudecon), Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem), Núcleo de Defesa da Saúde (Nudesa), Núcleo de Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes (Nudeca), Núcleo de Moradia e Fundiário (Numaf) e Núcleo de Direitos Humanos. O GT funcionará por três meses, a partir desta segunda-feira (25).
De acordo com o Defensor Público Geral, Rafael Barbosa, os moradores dos flutuantes não poderiam ser impactados pela decisão de remoção tendo em vista que eles não tiveram a oportunidade de defesa no processo.
“Estamos tratando de uma desocupação de um espaço onde as pessoas vivem e de onde tiram o seu sustento. O fato de ser um flutuante não muda essa necessidade. E foi essa sensibilidade que o juiz teve ao suspender a ordem de retirada”, afirmou.
A decisão liminar, emitida na quarta-feira (20), atendeu ao pedido da DPE-AM para suspender a ordem de remoção e desmonte de flutuantes, que deveria ocorrer nesta semana. A medida segue até a manifestação da comissão do TJAM, atualmente apenas as estruturas abandonadas continuarão no processo de retirada.
“Essa aqui é a nossa natureza, nossa realidade, nosso lar. Querem tapar o Sol com a peneira, procurar um culpado para o problema da poluição, que é muito pior do que só isso aqui. Visualmente, uma foto de cima parece que está poluído, mas na prática, fazemos o descarte correto do lixo, nós cuidamos e dependemos dessa água para viver. Tenho fé que a esperança dessas famílias vai voltar e que vão voltar a viver em paz, se preocupando só em comprar a comida do dia seguinte”, concluiu Sara Guedes.
Foto: Márcio Silva/DPE-AM