Um tradicional jogo entre solteiros e casados serviu para fazer o bem e mostrar que o terror vivido no último dia 12 não derrubou o otimismo dos moradores do bairro
O clima de terror que tomou conta do campo do Centro Social Urbano (CSU) do bairro Compensa 2 no último dia 12, quando seis pessoas foram assassinadas enquanto jogavam futebol, deu lugar ao espírito de confraternização e alegria. O motivo? Uma típica festa de final de ano, realizada no dia 31, para os boleiros do final de semana: um duelo entre solteiros e casados.
Desta vez, quem resolveu entrar na divisão de times feita a partir do estado civil foram os moradores da rua Natal, também no Compensa 2, Zona Oeste de Manaus, e alguns de seus amigos.
Durante o duelo que começou às 16h, as únicas armas vistas em campo foram a amizade e a solidariedade. E o que os parceiros pretendiam matar era a fome. De bola e de comida. Afinal, todos os atletas doaram 2kg de alimentos que seriam doados a uma instituição de caridade para poder participar da pelada e dos comes e bebes pós-jogo.
O funcionário público Manuel Queiroz, 46, um dos organizadores da partida, faz questão de dizer que o bairro onde mora em nada tem a ver com a triste noite da chacina. “Aquilo foi um caso isolado. Nós sentimos muito, mas a gente sabe que não tem nada a ver com o que aconteceu. Nosso jogo é uma tradição, que serve para reunir os amigos de infância”, afirma.
27 anos de história
Manuel tem razão. O confronto entre os solteiros e casados da rua Natal faz parte da cultura da comunidade. A primeira peleja foi em 1990. Em 2017, o confronto completou 27 anos. Fato que fez todos os quase 100 jogadores que entraram em campo estamparem o número de aniversários nas costas da camisa.
Detalhe: a cada ano os uniformes usados pelas equipes é desenhada com base em um tema. Como 2018 é ano de Copa do Mundo, as cores da Seleção Brasileira preencheram as camisas.
Pai x Filho
No duelo do último domingo (31), a questão familiar ia além do “ser casado” ou não. Duelos entre pais e filhos também marcaram a disputa.
O gerente de fiscalização do Estado Marcos Lasmar, 50, por exemplo, iria jogar contra o filho Salomão, 18, que estava no lado dos solteiros (foto abaixo). “Desde pequeno eu trazia ele para assistir e agora ele joga. É uma cultura que a gente vai passando para os filhos”, afirma o pai.
E como é jogar contra o pai, Salomão? “Todo mundo se diverte, mas é um pouco complicado. Os casados ficam querendo roubar no jogo”, brinca o jovem.
Companheirismo
Se fosse para contar todos os lance engraçados e histórias do confronto, nós encheríamos uma edição de domingo do Jornal A Crítica e ainda iria sobrar assunto. Mas o que chama atenção é o companheirismo dos amigos. “Se algum dos amigos, infelizmente, acaba morrendo ao longo do ano, após a partida aqui, nós vamos em frente à casa onde ele morava e fazemos uma oração pela família dele”, conta Edmundo Silva, 48, atacante dos casados e conhecido pelos colegas como Gura.
Em 2014, quando o pedreiro Evandro Castro, 55, sofreu um acidente de trabalho, quebrou a bacia e parou de jogar, foi amparado pelos amigos. “Graças a Deus e aos amigos aqui que me ajudaram bastante eu saí do sufoco”, revela.
Casados levam vantagem
O jogo do último dia de 2017 era a partida da volta. A tradição diz que na véspera de Natal acontece o primeiro jogo e a decisão fica para o réveillon. Em 27 anos, são 15 títulos para os casados e 12 para os solteiros.
A partida que acompanhamos foi pegada. Apesar da brincadeira, os solteiros queriam a qualquer custo, diminuir a vantagem dos casados no histórico de conquistas. No fim das contas, o confronto terminou em 3 a 2 para os que não usam aliança.
Como o placar do primeiro jogo foi 4 a 3 para os casados e não havia critério de desempate no regulamento, a disputa deveria ir para os pênaltis. Mas…
“Ficou muito tarde e não teve pênaltis, não. Mas o título ficou com os casados”, decide o Manuel do começo da reportagem.
Talvez seja por isso que o Salomão, filho do Marcos, tenha reclamado que os casados roubam. Não importa. O futebol Compensa!